22 de junho de 2012

Watergate, 40 anos depois





Assim como acontece no Brasil, a imprensa norte-americana, de quando em quando, também celebra suas efemérides. Em junho de 2012, a página do Washington Post (estou sem acesso à versão impressa) destaca os 40 anos do escândalo de Watergate. A despeito do canibalismo que sói aos abutres do jornalismo, seria banal esse tipo de comemoração. Afinal, quantos escândalos políticos já não foram noticiados e receberam atenção dos meios de comunicação e, mesmo assim, não mereceram a mesma estima ou deferência? E o motivo para isso é simples: o escândalo de Watergate não apenas fez com que o presidente Richard Nixon renunciasse ao cargo em agosto de 1974, mas, também, inventou, no imaginário dos leitores e dos consumidores de informação, uma espécie de modelo de jornalista e de reportagem investigativa.

         Tanto é assim que, 40 anos depois, o escândalo ainda parece bastante nebuloso para os leitores de hoje. Dito de outra forma, não fica claro, à primeira vista, o que foi que aconteceu de forma cristalina, de maneira que a explicação dos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein ainda seria necessária nos dias de hoje. Mais do que isso, em que pesem os avanços das novas tecnologias e a mobilização das mídias sociais (espécie de lugar-comum nos escândalos políticos de hoje), a investigação jornalística, isto é, o trabalho de apuração e de checagem de informação, que deve ser realizado de forma totalmente prosaica, ainda seria elementar mesmo no século XXI. Ora, se a essência do jornalismo não mudou, por que será que temos a sensação de que o trabalho da imprensa anda cada vez mais engessado, com amarras que, muitas vezes, impedem a elaboração de investigações de fôlego como aquela? No parágrafo a seguir, algumas hipóteses.
           
             Em primeiro lugar, existe o consenso, entre crítica especializada, jornalistas e leitores de que o a produção noticiosa hoje em dia está mais burocratizada. Em outras palavras, é como se as etapas para a produção de notícia, ao mesmo tempo em que ganharam com os já citados avanços tecnológicos, foram de tal sorte enrijecidos pela forma que o conteúdo parece sempre o mesmo. Com isso, repórteres, fontes, lobistas e principais envolvidos já se acostumaram com a divulgação dos escândalos que, de quando em quando, assaltam o noticiário. Assim, as assessorias de imprensa – e aqui não se quer vilipendiar o trabalho de quem emprega cerca de 70% dos jornalistas formados no Brasil – já premeditam a ação dos jornalistas, que, por sua vez, seguem um roteiro padrão das redações. Se, à época de Watergate, o trabalho era na sua maior parte feito na rua, hoje em dia o repórter faz isso das redações, consultando fontes da internet ou mesmo programas avançados desenvolvidos com softwares adquiridos a preço de ouro nas redações. Não por acaso, o trabalho de sites como o Wikileaks só é possível graças ao uso de tecnologias bastante avançadas. O trabalho não é de pior qualidade por isso. Pelo contrário, houve mais ganho do que perda com isso. Todavia, é mais do que necessário lembrar o adágio de grandes jornalistas, a saber: o lugar de repórter é na rua, e não no gabinete.


        Outra hipótese a ser considerada é a transformação do noticiário em um tribunal fast track. Pensem, por exemplo, numa reportagem sobre um escândalo político, e o roteiro é invariavelmente o mesmo. Existe o frenesi do furo nos primeiros dias, a repercussão pública nas semanas seguintes, o ataque desmedido dos pundits e dos formadores de opinião, o assassinato de reputações, o contra-ataque por parte dos envolvidos e, por fim, uma lavagem de roupa suja em praça pública, descreditando, muitas vezes, o trabalho dos meios de comunicação. O caso Dominique Strauss-Kahn parece exemplar nesse sentido. Entre a notícia e o desmentido, não há tempo ou mesmo interesse em absorver o conteúdo da notícia. O objetivo, assim parece, é para que os papéis de culpados e de inocentes sejam rapidamente preenchidos. Com isso, o público tem pouco tempo para absorver os acontecimentos e mesmo o desenvolvimento das histórias. Para citar um exemplo que serve de referência em caso de escândalo político, vale a pena mencionar o Mensalão. Noticiado pela primeira vez em 2005, o caso, que ainda hoje enfrenta uma guerra de narrativas travada pelos partidos da oposição e da situação, jamais foi tão bem explicado como em recente reportagem publicada por Daniela Pinheiro na revista Piauí sobre Delúbio Soares. Isso significa que o caso já foi totalmente explicado? Nada disso. Serve tão somente para mostrar o óbvio ululante: temas de grande complexidade exigem um mergulho e um tempo para o qual não necessariamente estamos preparados num mundo tão fragmentado como o de hoje. Dito de outro modo: até desejamos ler reportagens assim, mas, cada vez mais, esses escândalos exigem didatismo e uma dedicação dos veículos que não está de pronto dado pela ordem de mundo da contemporaneidade. E isso está ligado, talvez, com a última hipótese, que segue no parágrafo a seguir.

        É certo que os leitores de hoje tem mais acesso às informações e, tanto quanto isso, a uma infinidade de textos que pululam na internet. Isso, sem dúvida, é excelente. Todavia, cada vez mais, o tipo de conteúdo que os leitores buscam na web é aquele que endossa seu ponto de vista acerca de determinado assunto. Daí que a própria ideia do contraditório acaba se pervertendo, porque ora é o cumprimento cínico e burocrático do trabalho jornalístico, ora é solenemente ignorado pelo comentarista de plantão, que prefere o spinning, a distorção dos acontecimentos e o adjetivo à análise mais sofisticada do que aconteceu. Aos leitores que têm dúvida disso, faço o convite para a leitura dos comentários dos blogs e sites noticiosos. É a porta de entrada para a caixa de pandora. Os leitores estão sempre dispostos a investir no comportamento mais permissivo e acelerar em direção aos instintos mais primitivos em vez da razão. À época de Watergate, antes de Richard Nixon renunciar e ser escorraçado do mundo político, houve um levantamento do que efetivamente aconteceu. O trabalho da imprensa, nesse sentido, se notabilizou por servir de auxílio ao cumprimento das regras. Hoje, quando um blogueiro investe num ataque às autoridades constituídas, pode-se dizer que o público perde com a falta de civilidade que só faz crescer de lado a lado.

        O curioso disso tudo é que a origem desses problemas está mesmo na repercussão do caso Watergate, que, de fato, forjou um tipo ideal de jornalista no imaginário coletivo. Trata-se da figura que, graças aos seus contatos e à proximidade que mantém junto ao poder, é capaz de “derrubar”, inclusive, o presidente da República. Chama a atenção, nesse sentido, o fato de que, mesmo no Brasil, alguns escândalos assumiram a nomenclatura daquele ocorrido nos Estados Unidos: Collorgate, Frangogate etc. Watergate representou um marco não apenas para o jornalismo dos Estados Unidos, mas, essencialmente, para a ideia que se faz de qual deve ser o comportamento da imprensa, sempre vigilante e a todo momento à cata de uma notícia que pode mudar os rumos de um país. Como consequência, os jornalistas se tornaram celebridades a ponto de seu retrato, no cinema principalmente, tornar-se ligeiramente favorável. O modelo sempre é “Todos os Homens do Presidente”, mas mesmo num filme de intriga política, como é o caso de “O Dossiê Pelicano”, baseado na obra de John Grisham, o herói é o homem de imprensa. Mais recentemente, algumas peças tentaram relativizar esse ethos forjado nas décadas de 1970 e 1980, mas mesmo em “O informante”, talvez o melhor filme sobre jornalismo, se a mídia que pertence aos grandes conglomerados é fortemente criticada, ao jornalista que mantém suas raízes e sua fé no interesse público, nada menos que o protagonismo de Al Pacino serve como papel de representação.

             Há quatro décadas, o jornalismo norte-americano marcou um gol de qualidade incontestável para a imprensa mundial. Ainda hoje, somos beneficiados pela pertinência e pelo faro daqueles repórteres que não cessaram em desvendar o mistério do assalto à sede do Partido Democrata. Ainda hoje, devemos ser gratos pela coragem de Katharine Graham, editora do Washington Post n naquele período. Tão importante quanto a efeméride é a lembrança de que o jornalismo não pode sucumbir aos tiques e à zona de conforto e, enfim, para que possa ser percebido pelos seus leitores.



9 de junho de 2012

Ivan Lessa, obituário



Ivan Lessa foi um escritor que não publicou muitos livros. Autores menos importantes ou mesmo de talento discutível publicaram mais obras. O que isso significa? Uma pena para nós, os leitores que ficamos. Porque na obra de Ivan Lessa,  de "Garotos da Fuzarca" a "Eles foram para Petrópolis", passando pelas coletâneas de crônicas "Ivan vê o mundo" e "O Luar e a Rainha", o leitor tem em mãos um escritor com pleno domínio da técnica da escrita. Ivan Lessa não foi um grande ensaísta (embora tenha publicado um relato importante sobre a imprensa brasileira, a propósito da revista "Senhor"), não era um pundit no sentido de formar opinião (ou de influenciar corações e mentes, ainda que tenha sido um nome importante para o jornal "O Pasquim"), assim como não foi um grande romancista. Ainda assim, Ivan Lessa foi um grande escritor. Essa era (e ainda é) a sensação que os leitores temos quando passamos por seus textos.

Há muito, o gênero crônica foi não somente vilipendiado, como também tomado de assalto por certo colunismo da imprensa brasileira. De repente, todo o jornal merece ter seu cronista; de repente, todos são cronistas; de repente, não mais que de repente, a crônica é um gênero que, mais do que papel, aceita tudo. Ivan Lessa, no entanto, ajudava a colocar tudo no seu devido lugar. Em tempo: ele não desejava que seu texto se assumisse como grande literatura. No entanto, seus textos - mesmo as colunas para a BBC Brasil - alcançam tamanha perfeição formal, no tratamento dos temas e no acabamento do estilo, que fica mesmo difícil saber como é possível encontrar tanto equilíbrio em uma forma breve.

Como jornalista e homem de letras do seu tempo, Ivan Lessa escrevia sobre tudo. Comentava autores, abordava o mundo da política internacional, estava atento ao cinema e, vejam só, sabia qual era o talk of the town mesmo na televisão. Trata-se da agenda comum dos cronistas, aqui e alhures. O que tornava seu texto original e peculiar era a marca de seu estilo, não visível em cacoetes de linguagem ou beletrismos terceiro-mundistas. Nesse sentido, a retórica era um de seus recursos favoritos - o que pode soar simplório, mas num país (como o Brasil) onde os humoristas são levados a sério e os índices de leitura são risíveis, talvez seja o caso de reavaliar nossas primeiras impressões.

Pode-se afirmar que Ivan Lessa estivesse esquecido mesmo entre os autores e leitores brasileiros, a não se por aqueles de sempre que acompanhavam suas publicações na revista "Playboy", ou na "Piauí", ou, há pouco mais de uma década, no suplemento cultural do jornal "A Gazeta Mercantil", ainda sob o comando de Daniel Piza. Recentemente, foi Luiz Schwarcz quem comentou sobre a importância de Lessa - e foi pela editora dele, a Companhia das Letras, que três dos quatro livros de Lessa foram publicados. Quem se lembrou sempre de Ivan Lessa: Diogo Mainardi, em suas entrevistas, não hesitava em dar crédito a Ivan Lessa, responsável por sua invenção como leitor e, de certa maneira, como escritor.

Aos 77 anos, morreu Ivan Lessa, notável escritor e jornalista brasileiro.

4 de junho de 2012

O artificialismo de Joyce Carol Oates

Escrevi um texto sobre o mais recente livro de Joyce Carol Oates ("O Pássaro do Paraíso"), publicado no Brasil pela Alfaguara. Boa parte da crítica foi bastante elogiosa ao livro. Eu gostei do texto, mas achei que há algo ali que não fecha, como sugere o trecho a seguir da resenha, publicada originalmente na edição de junho do "Rascunho":

E é quando eles se encontram que a verve da prosa da autora salta aos olhos do leitor, conquistando território pelos estímulos e pelas imagens poderosamente concebidas. Em geral, poucos escritores investem na prosa erótica, sob pena de ficarem marcados pelo excesso ou pela vulgaridade. A narrativa de Carol Oates não entende o sexo como tabu. Antes, o percebe como passaporte para a atração (do leitor). Trata-se de um grande momento do livro, exatamente pelo que deixa revelar, como um decote: “Vi a fome também naqueles olhos: o macho sexualmente agressivo, sem a total certeza de seu poder sobre mim, sobre a pessoa que me tornara. Me perguntei se ele estava lembrando: a antiga ligação entre nós”. Mais uma vez, agora na terceira parte do livro, Oates caminha calculadamente. Só que agora o texto propõe uma narrativa que oscila entre os instintos mais primitivos e a mensagem pretensamente cifrada. Ocorre que a essa altura o leitor já conhece o vínculo entre os personagens. Assim, é lícito perguntar: será que as cenas que serviriam como acessório não estão funcionando como principal esteio da narrativa? A pergunta soa despropositada quando alcançamos o final do livro, exatamente porque, escritora talentosa, Joyce Carol Oates produz um efeito sem causa. Um romance que tem muito a dizer pela sua qualidade narrativa, mas que, ao final, se constitui pela força do artificialismo.


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