Assim como acontece no Brasil, a imprensa norte-americana, de quando em quando, também celebra suas efemérides. Em junho de 2012, a página do Washington Post (estou sem acesso à versão impressa) destaca os 40 anos do escândalo de Watergate. A despeito do canibalismo que sói aos abutres do jornalismo, seria banal esse tipo de comemoração. Afinal, quantos escândalos políticos já não foram noticiados e receberam atenção dos meios de comunicação e, mesmo assim, não mereceram a mesma estima ou deferência? E o motivo para isso é simples: o escândalo de Watergate não apenas fez com que o presidente Richard Nixon renunciasse ao cargo em agosto de 1974, mas, também, inventou, no imaginário dos leitores e dos consumidores de informação, uma espécie de modelo de jornalista e de reportagem investigativa.
Tanto é assim que, 40 anos depois, o
escândalo ainda parece bastante nebuloso para os leitores de hoje. Dito de
outra forma, não fica claro, à primeira vista, o que foi que aconteceu de forma
cristalina, de maneira que a explicação dos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein ainda seria necessária nos dias de hoje. Mais do que isso, em que
pesem os avanços das novas tecnologias e a mobilização das mídias sociais
(espécie de lugar-comum nos escândalos políticos de hoje), a investigação
jornalística, isto é, o trabalho de apuração e de checagem de informação, que
deve ser realizado de forma totalmente prosaica, ainda seria elementar mesmo no
século XXI. Ora, se a essência do jornalismo não mudou, por que será que temos
a sensação de que o trabalho da imprensa anda cada vez mais engessado, com
amarras que, muitas vezes, impedem a elaboração de investigações de fôlego como
aquela? No parágrafo a seguir, algumas hipóteses.
Em primeiro lugar, existe o consenso, entre crítica
especializada, jornalistas e leitores de que o a produção noticiosa hoje em dia
está mais burocratizada. Em outras palavras, é como se as etapas para a
produção de notícia, ao mesmo tempo em que ganharam com os já citados avanços
tecnológicos, foram de tal sorte enrijecidos pela forma que o conteúdo parece
sempre o mesmo. Com isso, repórteres, fontes, lobistas e principais envolvidos já
se acostumaram com a divulgação dos escândalos que, de quando em quando,
assaltam o noticiário. Assim, as assessorias de imprensa – e aqui não se quer
vilipendiar o trabalho de quem emprega cerca de 70% dos jornalistas formados no
Brasil – já premeditam a ação dos jornalistas, que, por sua vez, seguem um
roteiro padrão das redações. Se, à época de Watergate, o trabalho era na sua
maior parte feito na rua, hoje em dia o repórter faz isso das redações,
consultando fontes da internet ou mesmo programas avançados desenvolvidos com
softwares adquiridos a preço de ouro nas redações. Não por acaso, o trabalho de
sites como o Wikileaks só é possível graças ao uso de tecnologias bastante
avançadas. O trabalho não é de pior qualidade por isso. Pelo contrário, houve
mais ganho do que perda com isso. Todavia, é mais do que necessário lembrar o
adágio de grandes jornalistas, a saber: o lugar de repórter é na rua, e não no
gabinete.
Outra hipótese a ser considerada é a
transformação do noticiário em um tribunal fast
track. Pensem, por exemplo, numa reportagem sobre um escândalo político, e
o roteiro é invariavelmente o mesmo. Existe o frenesi do furo nos primeiros
dias, a repercussão pública nas semanas seguintes, o ataque desmedido dos
pundits e dos formadores de opinião, o assassinato de reputações, o
contra-ataque por parte dos envolvidos e, por fim, uma lavagem de roupa suja em
praça pública, descreditando, muitas vezes, o trabalho dos meios de
comunicação. O caso Dominique Strauss-Kahn parece exemplar nesse sentido. Entre
a notícia e o desmentido, não há tempo ou mesmo interesse em absorver o
conteúdo da notícia. O objetivo, assim parece, é para que os papéis de culpados
e de inocentes sejam rapidamente preenchidos. Com isso, o público tem pouco
tempo para absorver os acontecimentos e mesmo o desenvolvimento das histórias.
Para citar um exemplo que serve de referência em caso de escândalo político,
vale a pena mencionar o Mensalão. Noticiado pela primeira vez em 2005, o caso,
que ainda hoje enfrenta uma guerra de narrativas travada pelos partidos da
oposição e da situação, jamais foi tão bem explicado como em recente reportagem
publicada por Daniela Pinheiro na revista Piauí sobre Delúbio Soares. Isso significa que o caso já foi totalmente explicado? Nada
disso. Serve tão somente para mostrar o óbvio ululante: temas de grande
complexidade exigem um mergulho e um tempo para o qual não necessariamente
estamos preparados num mundo tão fragmentado como o de hoje. Dito de outro
modo: até desejamos ler reportagens assim, mas, cada vez mais, esses escândalos
exigem didatismo e uma dedicação dos veículos que não está de pronto dado pela ordem de mundo da contemporaneidade. E isso
está ligado, talvez, com a última hipótese, que segue no parágrafo a seguir.
É certo que os leitores de hoje tem
mais acesso às informações e, tanto quanto isso, a uma infinidade de textos que
pululam na internet. Isso, sem dúvida, é excelente. Todavia, cada vez mais, o
tipo de conteúdo que os leitores buscam na web é aquele que endossa seu ponto
de vista acerca de determinado assunto. Daí que a própria ideia do
contraditório acaba se pervertendo, porque ora é o cumprimento cínico e
burocrático do trabalho jornalístico, ora é solenemente ignorado pelo
comentarista de plantão, que prefere o spinning,
a distorção dos acontecimentos e o adjetivo à análise mais sofisticada do que
aconteceu. Aos leitores que têm dúvida disso, faço o convite para a leitura dos
comentários dos blogs e sites noticiosos. É a porta de entrada para a caixa de
pandora. Os leitores estão sempre dispostos a investir no comportamento mais
permissivo e acelerar em direção aos instintos mais primitivos em vez da razão.
À época de Watergate, antes de Richard Nixon renunciar e ser escorraçado do
mundo político, houve um levantamento do que efetivamente aconteceu. O trabalho
da imprensa, nesse sentido, se notabilizou por servir de auxílio ao cumprimento
das regras. Hoje, quando um blogueiro investe num ataque às autoridades
constituídas, pode-se dizer que o público perde com a falta de civilidade que
só faz crescer de lado a lado.
O curioso disso tudo é que a origem
desses problemas está mesmo na repercussão do caso Watergate, que, de fato,
forjou um tipo ideal de jornalista no
imaginário coletivo. Trata-se da figura que, graças aos seus contatos e à
proximidade que mantém junto ao poder, é capaz de “derrubar”, inclusive, o
presidente da República. Chama a atenção, nesse sentido, o fato de que, mesmo
no Brasil, alguns escândalos assumiram a nomenclatura daquele ocorrido nos
Estados Unidos: Collorgate, Frangogate etc. Watergate representou um marco não
apenas para o jornalismo dos Estados Unidos, mas, essencialmente, para a ideia
que se faz de qual deve ser o comportamento da imprensa, sempre vigilante e a
todo momento à cata de uma notícia que pode mudar os rumos de um país. Como
consequência, os jornalistas se tornaram celebridades a ponto de seu retrato,
no cinema principalmente, tornar-se ligeiramente favorável. O modelo sempre é
“Todos os Homens do Presidente”, mas mesmo num filme de intriga política, como
é o caso de “O Dossiê Pelicano”, baseado na obra de John Grisham, o herói é o
homem de imprensa. Mais recentemente, algumas peças tentaram relativizar esse
ethos forjado nas décadas de 1970 e 1980, mas mesmo em “O informante”, talvez o
melhor filme sobre jornalismo, se a mídia que pertence aos grandes
conglomerados é fortemente criticada, ao jornalista que mantém suas raízes e
sua fé no interesse público, nada menos que o protagonismo de Al Pacino serve
como papel de representação.
Há quatro décadas, o jornalismo norte-americano
marcou um gol de qualidade incontestável para a imprensa mundial. Ainda hoje,
somos beneficiados pela pertinência e pelo faro daqueles repórteres que não
cessaram em desvendar o mistério do assalto à sede do Partido Democrata. Ainda
hoje, devemos ser gratos pela coragem de Katharine Graham, editora do
Washington Post n naquele período. Tão importante quanto a efeméride é a
lembrança de que o jornalismo não pode sucumbir aos tiques e à zona de conforto
e, enfim, para que possa ser percebido pelos seus leitores.